domingo, 27 de fevereiro de 2011

Bom dia de inverno e divagações



É manhã de segunda-feira e, eu precisaria sair para resolver muitas coisas lá fora, mas a garoa que molha a janela onde o cinza sobressai a transparência do vidro sussurra com o vento: ...fica, fica em casa. Eu, como filha obediente do tempo e sentindo os dedos frios que agora tocam meu rosto, fico; entregando-me ao inverno que agora é todo o mundo. Inverno que há lá fora, que está aqui dentro e que me invadiu inteiramente.
Estou tão calma...
Tudo se transformou em delicadeza. O afastar meus cabelos que caem aos olhos, os dedos femininos tocando o teclado levemente, o piano da música triste que ouço harmonizando com a chuva tímida que cai no quintal...
Sinto o cheiro das folhas nas árvores molhadas. Os meus olhos estão marejados contendo lágrimas que nunca explicariam o que sinto por dentro. Limito-me a uma xícara de leite quente com café solúvel, é tudo o que consigo agora.
Penso...
Neste momento estou em meu quarto, ultimamente tenho estado muito aqui neste pequeno mundo rosa e azul e, olhando ao redor vejo o necessário para sentir-me bem: Livros, músicas, filmes, papéis e caneta, as lembranças de sobre uma cama, um espelho, aconchego das almofadas, paz.
Há muito os vizinhos não vêem meu rosto, pois e se saio, já é noite.
Noite passada para assistir um filme, coloquei o colchão no chão repleto de cobertores macios e almofadas. Isso para o felino gato que existe dentro de mim sentir-se o mais confortável possível em sua sinestesia.
Dormi no chão...
É boa a sensação de que alguns passados foram superados, de que um alguém que agiu tão cruelmente e me fez sofrer tanto, foi superado. Sinto um sorriso no rosto. Sinto-me livre, respiro fundo de alívio, pois ao menos esse demônio já exorcizei há muito das minhas lembranças.
Agora sem saber o motivo certo, escuto o som de um violino ao longe e vejo mãos muito brancas o tocando. São outras lembranças... Não de um demônio, mas de um anjo.
Melhor esquecer...
O pensamento num passado trai, o pensamento no futuro assombra.
Será que existe apenas uma realidade certa para nós, ou existem milhões de realidades paralelas de acordo com nossas escolhas? Talvez o destino seja realmente a providência que cruza pessoas em nosso caminho, mas o livre arbítrio (que nos faz inteligentes ou o inverso) é que escolhe quem fica ou não em nossas vidas. Entretanto se a providência põe pessoas em nossas vidas, ela também não poderia tirar? Qual a diferença?
Pensando em destino, somos apenas marionetes para um roteiro. Pensando em livre arbítrio, somos esquecidos e jogados num universo à mercê de nós mesmos. A existência torna-se cruel nas duas ideias.
Filosofo...

Será que realmente somos quem determinamos ser? Será que realmente temos o quê e quem determinamos ter, como dizem os otimistas? Será que existe de fato liberdade? Ou nossa liberdade limita-se a outras vontades alheias. Uma bala no peito tira nossa liberdade de viver. O amor platônico tira nossa liberdade de amar reciprocamente. A covardia ou a estupidez tira nossa liberdade de viver um amor que é recíproco.
Até que ponto somos livres, sendo nós também genética somática e psicológica de nossos pais? E as neuroses e traumas em nossa psique adquiridos das próprias experiências que nos impulsiona ou retrai nas ações, não está além da nossa vontade?
Antagonizo...
Pois talvez seja possível libertarmo-nos de tudo isso, se realmente tivermos vontade! Entretanto (antagonizo novamente...) existem os quatro temperamentos inatos ao homem, descoberto por Hipócrates e aprimorado por Immanuel Kant sendo eles: O tipo "sanguíneo" caracterizado pela força, rapidez e emoções superficiais. O tipo "melancólico" designado pelas emoções intensas e vagarosidade das ações. O tipo "colérico" caracterizado pela rapidez e impetuosidade no agir. E o tipo "fleumático" caracterizado pela ausência de reações emocionais e vagarosidade no agir. Tendências que os estudos somáticos de Hipócrates explicam através da medicina. Na ordem que descrevi os temperamentos consistem em: aparelho respiratório, nervoso cerebral, osteo-muscular e digestivo!
Será que temos o direito e dever de sermos livres, nascendo com temperamentos inatos?
Sou o tipo temperamento "melancólico" designado pelas emoções intensas e vagarosidade das ações, e nem com benzedeira será tirado essa tendência de mim.   
O leite com café solúvel esfriou além da minha vontade, porém tenho a liberdade de aquecê-lo e, o farei agora.
Parou de chover...
Vejo entrar pelas frestas da janela sobressaindo às cortinas, raios de sol, como uma esperança que invade e adentra o quarto... E a mim.
Lembro-me de alguém que tenta me fazer feliz de toda forma, ou melhor, da sua forma; não é sua culpa eu não o ser (está além da sua vontade e da sua compreensão da minha forma), mas o amo por ele ser a única pessoa neste mundo que tenta me fazer feliz! E serei eternamente grata.
Ser feliz é um estado d'alma, não uma condição. A condição de estar contente não quer dizer que se é feliz. Quem garante que aquele palhaço que vemos no circo é feliz? ...e é assim que vivo com o meu "temperamento melancólico inato" de Hipócrates.
Divago...
Nesta noite tive dois sonhos.
O primeiro sonho era uma situação em que eu, para me safar de um julgamento, teria que incriminar um amigo querido que não era tão inocente, mas que era uma nobre pessoa; ele teve seus motivos. Eu discriminava a forma que ele agira em seu crime (análise de caráter), mas entendia a maravilhosa pessoa que ele era (fidelidade, admiração e amor fraternal). Cometeu um erro, mas não era tão errado assim. O motivo que nos levou ao julgamento não lembro, só lembro as sensações. Era minha liberdade em jogo, eu iria a perder por ele. Lembro-me das opções que eu tinha em mente: potencializar o crime dele e me safar já que eu não era culpada, ou assumir tal culpa para libertar meu amigo, ou ainda dizer a verdade e esperar a justiça resolver (mas nesse caso eu não estaria sendo legal com meu amigo). O que fazer?
Eu disse a verdade sobre minha inocente participação, mas exceto isso tentei de toda forma o proteger, fiz tudo o que eu podia. A justiça o prendeu e me libertou.
O segundo sonho...
Era uma guerra universal ou uma invasão em que todos corriam para sobreviver. Eu tinha uma criança pesada no colo enlaçada em meu corpo, era muito difícil correr com ela. Se a largasse, eu estaria livre para correr mais rápido e a possibilidade de minha sobrevivência seria maior. Recordo a sensação do tamanho amor que eu sentia por aquela criança, recordo o quanto era pesado carregá-la... Duas dúvidas eu tinha em mente: abandoná-la para viver enquanto ela certamente iria morrer, ou tentar carregá-la sabendo que certamente nós duas iríamos morrer. O que fazer?
Corri com ela, fiz tudo o que podia para protegê-la. Não lembro se morremos ou vivemos...
No final apareceu um homem; ele disse que não se tratava do meu amigo ou da criança... O tempo todo se tratava de mim. Disse para eu não me culpar tanto, que eu era uma boa pessoa, e que eu tinha um bom coração.
Estou emocionada...
Minha psicanálise segundo Freud diz que meu inconsciente testou meu caráter. Minha crença segundo o budismo diz que nesta noite Deus testou a índole de minh'alma...
Enxugando as lágrimas e recompondo-me decidi que vou sair para o dia hoje, a imensidão do mundo lá fora provavelmente está mais bela que este quarto quadrado. Conclusão tomada por causa desse azul e amarelo lindo que tomou o cinza sobressaindo à transparência do vidro pela janela.
Será que o dia iluminou, ou fui eu quem se iluminou? Sussurra os raios de sol: ...vem, vem para a vida. Eu, como filha obediente do tempo, e sentindo os dedos aquecidos do dia novo em meu rosto... Digo: sim, claro que vou...


Tatiane Sales

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